Direitos Humanos na Coréia do Norte

O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos reconheceu oficialmente as violações generalizadas dos direitos humanos que ocorrem regularmente na Coréia do Norte. A seção seguinte é uma citação direta Resolução das Nações Unidas sobre Direitos Humanos referindo-se especificamente aos acontecimentos na Coréia do Norte:


  • Tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, castigos e execuções públicas.


  • Detenções arbitrárias e extras judiciais, ausência do devido processo legal, imposição da pena de morte por razões políticas ou arbitrárias.


  • Existência de um grande número de campos de prisioneiros e a ampla utilização do trabalho forçado.


  • Sanções aos cidadãos da República Popular Democrática da Coreia, que foram repatriados, como considerar sua partida como traição, levando a penas de internamento, tortura, tratamentos desumanos e degradantes e a pena de morte.


  • Proibição ao acesso de todos à informação.


  • Restrições graves e disseminadas à liberdade de pensamento, de consciência, de religião, de opinião e de expressão, reuniões sociais e associação pacíficas.


  • Contínuas violações aos direitos humanos e liberdades fundamentais das mulheres, em especial o tráfico de mulheres para a prostituição ou casamentos forçados, abortos forçados por motivos étnicos, religiosos ou políticos, incluindo injeções que induzem o trabalho de parto, assim como o infanticídio de crianças de mães repatriadas, condenadas em centros de detenção ou campos de trabalho forçados.

  • Liberdade de expressão


    A Constituição tem cláusulas que garantem a liberdade de expressão e de reunião. Na prática, outras cláusulas prevalecem, incluindo a exigência de que os cidadãos sigam um modo de vida stalinista-socialista. Críticas ao governo e seus líderes são rigorosamente punidas e fazer qualquer declarações é motivo para ser detido e enviado ao acampamentos de trabalhos forçados.

    Liberdade de Informação


    O governo distribui rádios e televisões às famílias de elite, que são proibidas de alterá-los para tornar possível o recebimento de transmissões de outras nações. Quando isso acontece, esta família é encarcerada em até três gerações, incluindo crianças, idosos, mulheres grávidas e recém nascidos. Este método de punição, copiado do modelo soviético, é executado em todos que ousam, direta ou indiretamente, argumentar uma ordem do Lider.

    Liberdade de Culto.


    "Famílias inteiras presas em campos de trabalhos forçados, onde crueldade, atos desumanos e fome garantem uma vida curta e atormentada." São descritas assim a punição pela manifestação da crença ou da fé.

    Liberdade de circulação


    Normalmente, os cidadãos não podem viajar livremente em todo o país ou para o estrangeiro. Só a elite política pode ser proprietária de veículos e que o governo limita o acesso a combustível e outras formas de transporte. (Fotos por satélite da Coréia do Norte demonstram uma quase total ausência de veículos nas estradas.) Reassentamento forçado dos cidadãos e das famílias, especialmente como punição por razões políticas, é dito ser rotina. Só os cidadãos politicamentes mais confiavéis e saudáveis podem viver em Pyongyang. Aqueles que são suspeitos de sedição, ou têm familiares suspeitos, são retirados da cidade, condições semelhantes afetam aqueles que são deficientes físicos ou mentais.

    Liberdade de imprensa


    Rádios ou aparelhos de televisão que podem ser comprados na Coréia do Norte são pré-configurados para receber apenas as freqüências do governo e selados para evitar freqüências dos outros países. É uma grave ofensa criminal manipular a máquina e receber ondas de rádio ou televisão vindas do estrangeiro.

    Direitos de pessoas com mobilidade condicionada


    Em 22 de março de 2006, a Associated Press da Coréia do Sul informou que um médico norte-coreano que desertou, Ri Kwang-chol, alegou que os bebês nascem com defeitos físicos são rapidamente mortos e enterrados. Um relatório das Nações Unidas refere ainda como as pessoas com deficiência são, abreviadas ou levadas para campos de concentração. Pessoas diagnosticadas com autismo e outras doenças relacionadas são muitas vezes perseguidos. Bebês deficientes são considerados impuros, assim como filhos de pais chineses ou cristãos.

    Prostituição


    O estado forçosamente recruta meninas de 14 anos a trabalhar no chamado kippumjo, um reduto de prostituição. Muitos são condenadas a casar com guardas de Kim Jong-il ou heróis nacionais, quando eles completam 25 anos de idade.

    Execuções públicas


    A Coréia do Norte retomou as execuções públicas em outubro de 2007 depois de terem diminuído nos anos seguintes, 2000 em meio a críticas internacionais. Em outubro de 2007, um chefe de uma fábrica na província de Pyongan. Foi condenado por fazer chamadas internacionais, à partir de 13 telefones que instalou em seu porão. Foi executado por um pelotão de fuzilamento na frente de uma multidão de 150.000 pessoas em um estádio. Em outro exemplo, 15 pessoas foram executadas publicamente, porque tentaram fugir para a China.

    O sistema prisional


    De acordo com um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos, as condições de prisão "são duras e ameaçadoras à vida. Grávidas reclusas sofrem abortos forçados em alguns casos, e em outros casos, os bebês são mortos após o nascimento em prisões. Governo da Coréia do Norte pratica, rotineiramente detenção, tortura e prisão de milhares de indivíduos alegados dissidentes ou sabotadores . O relatório afirma: "Métodos de tortura e abuso de força, incluídas espancamentos, choques eléctricos, longos períodos de exposição aos elementos externos (frio, calor, umidade). Humilhações como, nudez pública; reclusão por até várias semanas em pequenas celas, em que os prisioneiros não podiam ficar de pé ou se deitar, sendo forçados a a ficar imóveis por longos períodos, sendo pendurado pelos pulsos, e obrigando as mães, recentemente repatriados da China a assistir ao infanticídio de seus recém-nascidos" Desertores continuam a relatar que muitos prisioneiros morreram de tortura, doença, fome, exposição aos clima, ou uma combinação dessas causas. Shin Dong-Hyuk, um desertor nascido e confinado em um campo de prisioneiros políticos em Kaechon no sul da província de Pyongan por 22 anos, explicou que os espancamentos e torturas são comuns dentro do campo. Shin informou que ele foi torturado com brasas enquanto era pendurado no teto depois que um membro de sua família tentou escapar do campo.

    Prisão e Centros de Detenção


    Refugiados em ONGs, e relatórios de imprensa indicaram que havia vários tipos de prisões, centros de detenção e campos, incluindo campos de trabalho forçados e campos separados para prisioneiros políticos. Desertores descreveram que os campos podem chegam a cobrir 200 quilômetros quadrados. Descrevem sepulturas em massa, quartéis, locais de trabalho, e outras unidades prisionais. Aqueles condenados à prisão por crimes não-políticos são normalmente enviados para prisões de reeducação, onde prisioneiros, são submetidos a trabalho forçado intenso. Aqueles que foram considerados hostis ao regime, ou que cometeram crimes políticos, como a deserção, são enviados para campos de prisioneiros políticos por tempo indeterminado. Muitos prisioneiros em campos de prisioneiros políticos não tem esperança de sobreviver. O governo coreano continua a negar a existência de campos de prisioneiros políticos. Relatórios indicam que as condições nos campos de prisioneiros políticos são desumanas. Sistemáticos e graves abusos aos direitos humanos ocorrem durante a prisão e a detenção. Detidos e presos relatam,consistentemente, violência extrema e tortura diária. De acordo com os refugiados, os presos recebem pouca ou nenhuma comida e lhes são negados cuidados médicos e saneamento, não tem mudanças de roupa durante os anos do seu encarceramento e raramente são autorizados a tomar banho ou lavar as roupas.

  • créditos: texto na íntegra-original na wiki aqui
  • Welcome to North Korea

    Welcome to North Korea
    Feito por Peter Tetteroo e Raymond Feddema, da Holanda.

    Um documentário disfarçado de viagem a turismo. São 50 minutos passando pelos pontos turisticos de Pyongyang, sempre com um olhar crítico e denunciador.(em inglês)

    Os Cristãos e os Campos de Concentração na Coréia do Norte. Parte II

    De Human Pixels

    Soon Ok Lee conta os horrores dos campos de prisão norte-coreanos

    Fui educada em Chung-Jin, na província setentrional denominada Ham-Kyung, na Coréia do Norte. Entretanto, nasci na Alemanha e mudei-me para a Coréia do Norte com o meu pai que era um oficial do exército da União Soviética. Estudei da quinta-série até o ensino médio em Chung-Jin e fui cursar a faculdade em Pyung-Yang. Depois de terminar a graduação na Universidade de Economia Especializada, trabalhei no Banco Central por alguns meses. Então, aos 23 anos, filiei-me ao Partido Trabalhista Kim Il-Sung e fui aceita na Universidade de Economia do Povo de Pyung-Yang, uma das melhores instituições para formação de líderes nacionais. Tornei-me a gerente de distribuição de materiais no Partido Trabalhista Kim Il-Sung, onde eu trabalhei durante os próximos 17 anos. Eu era a única filha, vinda de uma família de prestígio político e, por isso, lealdade ao governo era um dever para mim. Contudo, acredito que minha mãe era uma cristã comprometida. Lembro-me que ela cantava hinos para mim como canção de ninar. Ela também me dizia que não deveríamos adorar homens como deuses, mas precisávamos acreditar no Deus verdadeiro. Apesar de tudo isto, eu vivia em um sistema de adoração a um homem, sob a ditadura absoluta de Kim e eu era mais fiel do que qualquer outra pessoa.

    Você contou que trabalhava para o governo norte-coreano. Explique sobre o cargo que ocupava e das responsabilidades que tinha.

    Eu era a gerente de distribuição de materiais. Resumidamente, essa era uma posição que até mesmo um homem sonharia ter em uma sociedade dominada por homens. A explicação é porque todo o país está baseado no sistema de distribuição. Tudo é distribuído pelo governo. Minha posição era considerada extremamente significante para Kim Il Sung porque eu estava, essencialmente, encarregada de distribuir materiais para toda a nação de 23 milhões de pessoas. Por 17 anos, recebi a máxima confiança de Kim Il Sung, que em troca, mantinha-me fiel a ele. Porém, como a economia começou a entrar em colapso na década de 1980, tornou-se cada vez mais difícil a distribuição de mercadorias e recursos para muitas partes do país. A escassez de comida tornou-se um grande problema por toda a nação e, finalmente, toda a culpa foi passada para mim. Apesar de ser responsabilidade de Kim Jung Il que o país estivesse morrendo por falta de alimento, ele falou às pessoas que elas estavam passando fome porque eu tinha administrado mal os recursos e não fui capaz de distribuí-los igualmente por todo o país. Neste primeiro ciclo de eliminação de oficiais, infelizmente, fui selecionada e lançada no campo de prisão política por sete anos.

    Você disse que estava em um campo de prisão política. Você pode explicar sobre o tipo de lugar, o número de pessoas, as condições do campo e falar sobre a sua experiência mais dolorosa naquele local? Você ainda tem essas marcas de sofrimento, mesmo depois de sete anos?

    O campo de prisão que eu fui enviada está situado em Kae-Chon, ao sul da província de Pyung-Yang. Há mais de seis mil presos neste local: mais de quatro mil são homens e mais de duas mil são mulheres. A maioria dos presos está lá por razões políticas. Alguns foram capturados enquanto viajavam para lugares que não tinham permissão em busca de comida. Algumas eram mães queixando-se que seus filhos estavam morrendo de fome. elas perguntavam-se "por que tenho que morrer desta maneira? Por que eu não posso comer até ficar satisfeita como as pessoas em outros países?". Pessoas que tinham este tipo de pensamento eram consideradas como de má ideologia. Se a mãe estivesse grávida, segundo a lei norte-coreana que diz que a semente de um criminoso deve ser queimada até sua terceira geração, eles abortavam o bebê. Se, de algum modo, o bebê sobrevivesse e nascesse, eles estrangulavam o bebê, esmagando com os pés na frente de sua própria mãe. Eu também testemunhei muitos experimentos feitos com humanos. Eles diziam que era inútil testar armas e produtos químicos em animais porque este tipo de armamento foi criado para atingir os inimigos, outros seres humanos. Eu também vi muitos cristãos no campo. Por causa de sua fé em Deus e porque cantavam hinos nos campos, eram pisoteados até morrer. Se não negassem a Deus, eram queimados com um metal líquido fervente até a morte. Vi muitas coisas indescritíveis que não eram vislumbres raros para mim. Por ter passado por muitas torturas físicas, eu ainda tenho muitas marcas deixadas no meu corpo. O lado direito do meu rosto ainda está um pouco torcido, a parte esquerda da minha boca está torta e os dentes de todo o lado esquerdo da minha boca estão quebrados. Diariamente convivo com muitas dores físicas no meu corpo e é difícil suportá-las. Porém, lembro-me que, neste exato momento, muitas pessoas estão passando por torturas e experimentos humanos. Mas eu quero continuar a contar ao mundo sobre os cristãos e os problemas de direitos humanos existentes na Coréia do Norte.

    Depois de você ser desertada para a Coréia do Sul, de que maneira você experimentou a Deus?

    Desde o momento em que saí da minha casa na Coréia do Norte, eu posso ver claramente como Deus esteve comigo, conduzindo cada passo que eu dava. Na noite que eu parti, estava frio e nublado e o chão estava coberto de neve. O ar denso dificultou que os guardas enxergassem. Quando eu atravessei a fronteira para a China, avistei, por acaso, um condomínio que pertencia a uma pessoa com quem eu trabalhei. Deus também me fez lembrar de um número de telefone que eu sabia há dez anos! Então, eu entrei em contato com o homem que era o chefe de uma determinada agência na China. Ele me ajudou a sair do país. Eu posso ver o Deus que me guiou durante os momentos mais difíceis de minha vida.

    Como podemos ajudar os refugiados norte-coreanos que vivem na China?

    Primeiramente, precisamos evitar que eles sejam enviados para a Coréia do Norte. Eles precisam de abrigo que garantirá a sua segurança quando cruzarem a fronteira. O congresso americano está tentando promover este tipo de facilidade, mas é difícil porque o governo chinês não apóia. Sem a aprovação, é impossível levar este plano adiante. Atualmente, há muitos movimentos para persuadir o governo chinês a aceitar os refugiados como sul-coreanos.

    Como vivem os desertores na Coréia do Sul?

    Creio que eles vivam bem. Há alguns que causam problemas porque não sabem como lidar com o conceito de liberdade.Contudo, a maioria deles está trabalhando arduamente e progredind. O governo sul-coreano também lhes fornece uma pequena ajuda financeira, que é útil. Uma área que necessita melhorar é a de empregos. Acho que o governo deve intervir de alguma forma para facilitar a obtenção de emprego. Há alguns desertores que estão empregados e ganhando sua própria vida, mas as pessoas mais idosas e especialmente as mulheres, estão passando por um momento muito difícil para poderem se manter financeiramente.

    Então, se você não estivesse fazendo o que você está fazendo agora, você também estaria recebendo auxílio do governo sul-coreano?

    Sim, exatamente. Eu estou em uma viagem solitária. Eu tenho que fazer isto sozinha porque não há muitas pessoas para participar comigo neste esforço de expor as atrocidades da Coréia do Norte. Contudo, pelas pessoas em agonia e pelos cristãos perseguidos na Coréia do Norte, estou arriscando minha vida. Embora seja um trabalho solitário e difícil, acredito que fui chamada para fazer isso e esta seja a missão que recebi nesta vida.

    Soon Ok Lee



    Texto e Vídeo tirados daqui Missões Portas Abertas

    Os Cristãos e os Campos de Concentração na Coréia do Norte.

    Leia a seguir a história de Kim Tae Jin, um cristão norte-coreano que sobreviveu ao campo de concentração e hoje trabalha para ajudar compatriotas que fogem para a China:

    De Human Pixels

    A juventude:

    "A coisa mais difícil para mim", diz ele calmamente, "é tomar decisões por mim mesmo. Se você me pedir 10 vezes para movimentar uma cadeira ao redor de uma sala, eu atenderei ao pedido sem sequer me questionar qual o propósito disso. Mas se eu tiver de decidir que faculdade cursar, eu não sei".

    Isso não surpreende. Qualquer pessoa que não tem permissão para pensar por si mesma por 30 anos ou mais acaba perdendo essa capacidade. Qualquer um que costume ter as decisões tomadas no seu lugar, não é capaz de decidir por si mesmo.

    Kim nasceu em 1956, na China. Seu pai divorciou-se de sua mãe quando ele era ainda bem jovem. Por isso, ele tem alguns meio-irmãos e uma meio-irmã. Em 1961, ele se mudou com seu pai para o norte da Coréia do Norte, e, em 1964 para Wonsan, uma cidade portuária no sul do país.

    "Quando eu era jovem, não me sentia infeliz", conta Kim. "Fomos educados como comunistas. O general Kim Il Sung tinha salvo o povo dos 'ricos'. A Coréia do Sul foi ocupada pelos americanos. Um dia nós libertaríamos nossos compatriotas do jugo dos imperialistas. Uma relevante parte de nossas lições na escola era decorar os discursos e os escritos de Kim Il Sung. Levaria 10 anos para contar em detalhes tudo que aprendi. O que posso dizer é como nós devíamos encarar o sistema. O partido é a mãe, Kim Il Sung é o pai, e Jim Jong Il é o filho. Não sou mais capaz de recitar exatamente o que aprendi na ocasião. Deus tem removido isso da minha mente."

    Liberdade de escolha, como foi mencionado, é um conceito desconhecido na Coréia do Norte. "Isso simplesmente não existe. O partido nos diz o que temos de fazer. Somos tratados como um grupo, não como indivíduos. Na realidade, o que aumentava grandemente suas oportunidades na carreira era se você conhecesse Kim Il Sung. Então você tinha prestígio. Muitas pessoas que queriam ser promovidas tentavam de tudo para encontrá-lo. O que realmente me irritava era que o partido também determinava que emprego eu deveria aceitar. Depois do ensino médio, tive de trabalhar na linha de produção de uma fábrica. Era um trabalho muito simples. Apesar disso, eu ainda acreditava que a Coréia do Norte era o paraíso na terra."

    As dúvidas:

    "Certa vez, vi em um livro uma foto de um lavrador sul-coreano com um saco nas costas. Abaixo estava escrito: 'Esse pobre lavrador está sendo explorado pela burguesia sul-coreana'. Mas eu reparei nas roupas dele e vi que eram muito melhores que as nossas. Além disso, nossos lavradores trabalhavam na terra do mesmo modo. E, nos jornais, vi fotos de manifestações na Alemanha Ocidental e na Coréia do Sul. As fotos foram feitas para ser vagas, de modo que eu não podia distinguir muito bem que tipo de construção havia ao fundo. A legenda informava que as pessoas estavam extremamente inflamadas contra a classe dominante. Mas pelo menos eles tinham permissão para demonstrar essa raiva... No meu país, isso é impensável".


    A primeira fuga:

    Em 1986, Kim fugiu pela primeira vez para a China. Primeiro ele foi em busca de parentes que ainda viviam lá. Ele não foi muito bem recebido.

    "Meus parentes estavam amedrontados. Eles corriam um grande risco por esconder um norte-coreano. Hoje em dia as punições por esconder refugiados norte-coreanos são muito mais severas. Eu consegui um emprego em uma mina. Não era um trabalho agradável, mas era um bom lugar para me esconder das autoridades. Antes de mais nada, eu estava muito desapontado na China. Ali também havia um estado comunista que governava com mãos de ferro. Eu tinha de estar vigilante o tempo todo."

    Na China, pela primeira vez, Kim teve contato com o cristianismo. Um chinês coreano lhe deu uma Bíblia.

    "A mãe da família com quem eu estava hospedado me convidou para ir à igreja, mas eu não quis. Eu tentei ler a Bíblia e comecei pelo Gênesis, mas não entendi nada. Ainda assim eu podia ver naquela família que o cristianismo era algo bom. Especialmente o amor que eles tinham me deixava com inveja. Eles eram muito diferentes de mim".

    A prisão:


    Depois de quatro meses, Kim foi descoberto. "Eu estava caminhando pela estrada e encontrei um policial. Eu ainda estava com uma Bíblia. Eles me prenderam. Só na prisão eu compreendi como a China era muito melhor do que o meu país. Mesmo na cadeia a comida era melhor que a comida comum na Coréia do Norte".

    Kim foi repatriado sem clemência. "Eu estava com medo do que estava por acontecer. Será que eu seria executado imediatamente? Ou seria enviado para um campo de trabalhos forçados? Mesmo ainda não tendo aceitado Jesus como meu Salvador, eu orava ocasionalmente. Eu pedia para que fosse libertado. No final das contas, ele respondeu às minhas orações."

    "Eu não fui muito torturado, mas a situação era bastante torturante", conta Kim, e pela primeira vez um sorriso invadiu sua face. Mas então ele começou a descrever os oito meses que passou nas mãos do serviço secreto.

    "Eles me agrediram com varas, e quase não me davam nada para comer. Eu tinha de ficar sentado todo o dia na mesma posição, o que fazia minha perna doer terrivelmente. Além disso, não tínhamos permissão para lavar ou limpar os dentes. Os piolhos saltavam sobre nós noite e dia. À noite, eu tinha de sobreviver apesar das pulgas, dos piolhos e do frio intenso. O cobertor despedaçado não proporcionava quase nenhuma proteção".

    Outros prisioneiros estavam em estado ainda pior. "A perna de um preso foi amputada depois que ele desenvolveu uma ulceração causada pelo frio. Um prisioneiro, conhecido como 'Sapo', uma vez teve de passar a noite com os guardas enquanto era mantido pelado. Naquela noite a temperatura era de 20 graus negativos. Seus gemidos deixaram a mim e aos outros prisioneiros aflitos. O 'Sapo' não conseguiu suportar e suicidou-se dando várias cabeçadas na parede".

    Kim confessou todas as acusações. "Era melhor cooperar. Eles tinham provas suficientes. Eles encontraram com minha mãe uma carta que eu havia enviado da China. Nela eu escrevi que não achava que a China era um país tão bom, e que com certeza não era muito melhor que a Coréia do Norte. Quando fui mandado para a prisão, minha esposa foi forçada a se divorciar de mim. Na realidade, aquilo foi bom, pois significava que meus filhos não estavam ligados a um dissidente. Se eles tivessem permanecido ligados a mim oficialmente, suas chances profissionais desapareceriam para sempre. Eu não sei como eles estão agora".

    O campo de concentração:

    Depois de 8 meses terríveis, em 31 de março de 1988, ele foi mandado para o campo número 15, Yodok. O nome traz associações com o campo da morte de Auschwitz-Birkenau. Esse imenso campo de trabalhos forçados fica na província de Hamkyung, encravado nas montanhas, o que torna uma fuga quase impossível. Em locais onde há qualquer chance de tentar escapar com sucesso, foram construídos muros altos, protegidos com arame farpado. Algumas partes são eletrificadas. Além disso, há campos minados e outras armadilhas mortais. Numa distância de dois quilômetros, há uma torre de vigia de sete metros de altura. Qualquer um que tente escapar é baleado. Se alguém for capturado vivo, é executado publicamente. Os prisioneiros recebem tratamento pior do que é dado aos animais. Quase não há comida. No verão e no inverno, eles recebem apenas uma muda de roupas. Muitos prisioneiros sucumbem à doença ou à fome. Os que estão vivos parecem fantasmas ambulantes.

    "Entretanto, quando eu cheguei ao campo, não fiquei chocado com isso", afirmou Kim. "Depois de oito meses preso, eu via a mesma coisa. Além disso, eu outra vez tinha um pouco de esperança. O guarda da prisão me disse que eu não seria executado. Fui levado de trem. A última parte da viagem foi feita de caminhão. Quando eu passei pelo portão de entrada, não me deixaram olhar para cima. Acho que foi porque primeiro passamos pela parte da prisão onde estavam os presos que nunca seriam libertados. Viajamos por pelo menos 30 quilômetros dentro de Yodok antes de chegarmos ao alojamento.

    No campo, todos os novos prisioneiros são primeiramente avaliados e divididos em três grupos: fortes, normais e fracos. Essa avaliação determina o quanto de comida o prisioneiro receberá e que tipo de trabalho ele terá de fazer. Felizmente, apesar dos meus oito meses na prisão, eles me consideraram como forte. Eu tive de trabalhar na terra e às vezes recebia um pouco mais de comida do que os outros presos".

    Normalmente a comida não passava de 100 gramas de milho três vezes por dia. Os prisioneiros precisavam ser criativos. Às vezes Kim conseguia fazer uma sopa de vegetais com plantas comestíveis que podiam ser achadas nas montanhas. "Era muito difícil comer aquilo. Era muito picante". Ele também de vez em quando conseguia caçar e comer algum roedor, ratos, cobras ou sapos. Ovos de sapo são também muito procurados entre os prisioneiros de Yodok.

    As circunstâncias:

    Normalmente Kim tinha de se levantar por volta das 3 ou 4 horas da manhã, assim que o sol nascia. Ele voltava para o alojamento depois do anoitecer.

    "Todo o sistema me deixava desesperado. Via pessoas morrendo de fome e de doenças. Assistia a execuções. Mas um dia, tivemos de nos reunir em uma sala grande onde soubemos que em homenagem ao aniversário de um dos líderes, alguns prisioneiros seriam libertados por bom comportamento. Naquele momento, eu decidi que seria um prisioneiro modelo e que sobreviveria àquilo. Eu sabia que eu teria de ficar pelo menos de 3 a 5 anos em Yodok para poder ser libertado. Eu estava determinado a não cometer qualquer erro".

    Por causa do período que passei na prisão, eu tinha muitos problemas com minhas pernas e costas. Em Yodok também acontecia de os prisioneiros serem agredidos. Um dia eu tinha de trabalhar na construção de uma parede à prova de balas. Um dos companheiros tinha sido agredido, despido e acorrentado porque tinha roubado alguns tomates. Os guardas o deixaram deitado lá por toda a noite. Eu me arrastei até ele e carreguei-o nas costas porque ele não podia sair de lá sozinho.

    Também vi como um prisioneiro foi brutalmente espancado porque plantou o milho ligeiramente diferente da maneira que Kim Il Sung tinha ordenado. Um prisioneiro chamado Choi não conseguia cumprir suas tarefas por causa da desnutrição e de uma doença. Mas ele também foi espancado e mandado para o trabalho de qualquer modo. Choi agia como se tivesse ficado louco. Ele roubava comida do cachorro e chegou a decepar os dedos de sua mão com um machado. Certa vez testemunhei a execução de cinco prisioneiros. Eles tinham tentado escapar. Os homens amarrados e vendados foram obrigados a se ajoelhar e foram baleados com três tiros cada um. O último tiro era disparado contra o coração ou a cabeça".

    O grupo de cristãos:

    "Eu nunca esperei que pudesse haver qualquer cristão em Yodok. Eu conheci o líder de um grupo de sete cristãos. Eles se chamavam de Comunidade do Amor e ocasionalmente se reuniam em segredo. Eu sabia que era proibido ser um cristão no campo. Ainda assim eu não tinha medo de falar com ele. Ele era muito divertido. Às vezes ele me contava histórias da Bíblia e eu gostava de ouvi-las. Mas eu não queria confessar meus pecados. Quando ele me pediu para fazer isso, eu me fechei e não disse qualquer palavra".

    Mas Kim perguntou ao homem: "Como você sabe que Deus existe?"

    "Eu não sei", o homem replicou. "Assim como você não sabe que o sol existe. Você sente o calor do sol em sua pele. O mesmo é verdade para Deus".

    Em Yodok, os guardas normalmente nomeiam informantes. Alguns prisioneiros são obrigados a preparar um relatório semanal sobre o que os companheiros fazem de errado. Um deles denunciou o grupo de cristãos.

    "Eles foram horrivelmente torturados. Eles agarraram meu amigo com tanta força que seu braço teve de ser amputado, provavelmente sem anestesia. Depois disso, ele e os outros foram enviados para outro campo, com um regime ainda mais rígido. Você não sai vivo de um lugar como aquele. Depois desse episódio, eu tentei encontrar de novo alguns cristãos em Yodok, mas não tive sorte".

    Assim como todos os outros prisioneiros, Kim freqüentemente pensava em tentar fugir, mas ele entendeu que tinha mais chance de sobreviver se ficasse quieto. Depois de três anos de prisão, um guarda lhe disse: "Se você se comportar bem neste ano também, será libertado no próximo ano".

    A libertação:

    Em 1º de abril de 1992, junto com milhares de outros prisioneiros de sua aldeia (Yodok é dividido em várias aldeias), ele se dirigiu à grande sala. Duas semanas depois era o aniversário de Kim Il Sung.

    "Em honra a essa ocasião, alguns prisioneiros seriam libertados. Quando meu nome foi lido, eu nem pude acreditar. A alegria é indescritível. Finalmente eu teria permissão para deixar esse inferno, essa cova coletiva em que se enterravam pessoas vivas. Era um milagre que eu pudesse sair de lá com vida. Os outros prisioneiros que também seriam libertados também estavam imensamente felizes. Uma vez eu vi um prisioneiro ter um ataque cardíaco quando seu nome foi lido. Ele morreu na hora. Uma tragédia."

    Seu último dia em Yokok foi 10 de abril de 1992. Ele foi colocado em um trem para ir ao encontro de sua família, que o expulsou por não querer ter qualquer coisa a ver com ele. "Depois da minha libertação, eu não sabia o que devia fazer da minha vida. Na realidade, eu só queria uma coisa: sair da Coréia do Norte. Mas, como ex-prisioneiro, eu era vigiado pela polícia secreta. Era impossível fugir. Eu ainda estava em um tipo de prisão".

    A segunda fuga:

    "Pode parecer cruel, mas a fome dos anos noventa foi uma dádiva de Deus para mim. As pessoas viajavam em busca de comida. Muitos se mudavam para o norte por períodos maiores ou menores. Ninguém notou quando eu passei escondido, e o controle era menos rígido naquela ocasião".

    Kim foi sozinho para o norte, para o rio Jalou, que forma a fronteira com a China. Como na primeira vez, durante a noite ele encontrou um lugar mais raso e caminhou pela água gelada. Algumas partes estavam quase congeladas. O leito do rio com as pedras no fundo era escorregadio feito gelo.

    "Eu simplesmente comecei a correr pela água", disse Kim. "Eram menos de 100 metros. A certa altura, eu escorreguei e caí. Fiquei seriamente machucado. Depois disso, tive de cruzar a área montanhosa procurando por um lugar para me esconder. Aqui e ali, ainda havia neve. Em alguns lugares eu andei de quatro, como um cachorro".

    Finalmente, Kim encontrou um esconderijo, sobre o qual não podemos dizer nada, por razões de segurança, exceto que ele teve vários empregos e mais uma vez entrou em contato com alguns cristãos. Em dezembro de 1997, ele ganhou uma Bíblia coreana e no mesmo mês foi batizado.

    Sobre sua conversão, Kim conta: "Não sei exatamente como aconteceu. Deus me alcançou e eu aceitei sua Palavra como verdade. Lentamente comecei a entender a Bíblia melhor. Não demorou muito para que eu me tornasse líder de um grupo de norte-coreanos com quem eu estudava a Bíblia".

    Mas na China Kim não estava em segurança. Ele queria ir para a Coréia do Sul. Na primavera de 1999, ele se mudou para Pequim, capital da China, para candidatar-se junto à embaixada sul-coreana. A família que o hospedava advertiu: "Impossível! É muito perigoso!", eles disseram. Porém, em abril de 2001, Kim entrou em contato com uma organização que tirava norte-coreanos do país de forma clandestina. Kim tinha de estar pronto para partir a qualquer momento.

    A esperança:

    Em 8 de julho, a esperada chamada telefônica aconteceu. Eles iriam pegá-lo no local em que estava e levá-lo para a Mongólia, para finalmente alcançar a Coréia do Sul através desse país. O grupo era formado por 8 pessoas. Eles tentaram cruzar a fronteira em dois grupos de quatro pessoas cada. Entretanto, seis das oito pessoas foram capturadas.

    "Há pouca dúvida sobre o destino deles. Eles foram enviados para a Coréia do Norte, torturados e, se tiverem sobrevivido, foram enviados a um campo de trabalhos forçados".

    Kim conseguiu chegar à Coréia do Sul a salvo. Agora ele está sentado aqui, nesse ambiente pacífico distante apenas algumas dezenas de quilômetros da Coréia do Norte.

    "No meu país, nada irá mudar enquanto Kim Il Jung estiver no poder. Só Deus pode fazer uma reviravolta na Coréia do Norte. Mas como? Através de uma guerra? Através de um desastre natural? Vamos orar para que Deus intervenha sem que haja derramamento de sangue."

    Agora Kim aproveita todas as oportunidades para falar sobre seu país, especialmente sobre os cristãos, que não são perseguidos em nenhum outro lugar no mundo como na Coréia do Norte.

    "Minha mensagem pessoal é: demonstre interesse pelo meu país. Ore por ele. Precisamos do seu apoio.

    Texto tirado daqui Missões Portas Abertas

    De Human Pixels
    Kim Tae Jin trabalha para uma organização que apóia os norte-coreanos refugiados.

    links relacionados (em inglês)

    entrevista com Kim Tae Jin sobre os gulags norte coranos
    relato Kim Tae Jin

    Dentro do Vazio Comunista Parte VI

    No coração das trevas (sexta parte)
    Claudio Mafra

    Com a advertência para ficarmos sempre juntos, fomos levados para ver a “terra de ninguém”, ou DMZ (Zona Desmilitarizada): uma estreita faixa de uns trinta metros, que separa as duas Coreias. Aqui, neste lugar carregado de eletricidade e ódio, os soldados dos dois países montam guarda, andando em alguns quadrados de cores diferentes, tão perto uns dos outros que, se estendessem os braços, poderiam se tocar.


    Os coreanos do norte com seus uniformes cor cáqui, modelos da década de cinquenta, figuras esqueléticas, um pouco de miséria em seus rostos, e os sul-coreanos completamente americanizados, de capacetes e óculos ray-ban. Existe um enorme cuidado para que não se quebre o delicado equilíbrio entre eles. Os soldados são substituídos a pequenos intervalos, para que não se cansem e cometam algum erro. Caminhando com os olhos no visor da câmera, sem querer coloquei um pé na faixa branca, início da “terra de ninguém” do lado norte-coreano. Foi uma gritaria pânica, onde se uniram guias, soldados, turistas. Comecei a pedir tantas desculpas que só faltei me dirigir também aos coreanos do sul, agitadíssimos, olhando para nós, sem saber o que acontecera. O soldado guia, a quem estavam destinados os cigarros que eu trouxera, e que esqueci no hotel, veio para o meu lado e disse que algum tempo atrás um inglês também se distraíra e quase havia entrado na Coreia do Sul, sendo fuzilado antes disso. Sim senhor, muita amabilidade sua me avisar.

    South Korea Soldier | Soldado Sul Coreano.

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    ROK Soldier, upload feito originalmente por *christopher*.

    De volta ao centro de Pyongyang, a intimidade com os guias alcança o seu nível mais alto. Eu sempre quis fotografar a guardinha de trânsito, muito bem fardada em azul, usando um bastãozinho com tanta energia que até parece que existe tráfego. Agora, quando passamos outra vez pelo mesmo lugar, o rapaz manda o chofer parar o carro e, bem malicioso, diz que posso descer e tirar minhas fotos. Respondo que não me interessa, porque de uma hora para outra pode sair alguém de trás do poste e me confiscar o filme. Os dois explodem em gargalhadas.





    Sou levado para ver o “USS Pueblo”, que foi trazido do porto de Wonsan para o rio Daedong, em Pyongyang. Este é um grande troféu de guerra. O Pueblo era um navio espião americano que foi aprendido pelos norte-coreanos em 1968, provavelmente em águas internacionais. O capitão do barco, após a ameaça de que todos os 83 membros da tripulação seriam mortos, a partir do mais moço, até chegar a ele próprio, assinou uma confissão dizendo que estava espionando os norte-coreanos. Foi um episódio que provocou uma grande crise internacional durante a Guerra Fria, e provocou um enorme desgaste na imagem dos Estados Unidos.

    Sou apresentado ao marinheiro que primeiro colocou os pés no navio, após uma rápida batalha. Agora ele é o “capitão” do Pueblo e, todo elétrico, mostra os buracos feitos pelas balas de metralhadoras e canhões dos navios norte-coreanos. Enquanto vamos andando pelos corredores apertados, subindo e descendo escadas, o herói começa a me contar muitas histórias, onde exalta a coragem dos seus antigos companheiros e ri da covardia dos americanos. O clímax é quando ele mesmo deu um chute no traseiro do capitão Bucher que tentava se esconder debaixo de uma mesa. Aprovo tudo que está me dizendo, mas a cena é mesmo de comédia pastelão misturada com uma infantilidade sinistra, porque além do absurdo do capitão tentando fugir, a mesa é ridiculamente pequena. Olho em volta, mas o guia já se mandou. Ele é muito esperto. Definitivamente não quer se envergonhar na minha frente. Preferiu me esperar do lado de fora do navio para os seus comentários políticos. Kong me diz que os russos fizeram enorme pressão para que a tripulação do Pueblo fosse logo libertada, e que o embaixador soviético em Pyongyang chegou a ameaçar o governo do Grande Líder com retaliações econômicas e políticas. Mesmo assim, Ele não cedeu; impossível imaginar que Ele fizesse isso. Os russos poderiam ficar com medo dos Estados Unidos, mas jamais a Coreia do Norte. Aponta para o Pueblo, que é a prova incontestável do que diz: emoldurada em uma das salas do navio está a cópia da humilhante confissão do capitão Bucher. (O pobre Bucher, quando chegou aos Estados Unidos, foi muito mal recebido e forçado a se aposentar).

    Peço para ser fotografado apertando a mão do folclórico capitão, que está satisfeitíssimo por ter saído da chatice de ficar naquele navio o dia inteiro, sem ninguém para contar as suas histórias extraordinárias.

    Já está chegando a hora do meu embarque e nada de aparecer o ticket da Air Koryo.

    O guia me diz que está fazendo um grande esforço, parece que o avião está lotado, mas ele tem um amigo que talvez possa resolver o problema. Bem, essa história eu já conheço. Afinal o amigo conseguiu a passagem, mas infelizmente teve muitas despesas e ela… ficou mais cara. Novamente fico impressionado. Um regime de ferro, e as pessoas se arriscam de qualquer maneira.

    No aeroporto os guias estão satisfeitos. Parece que realmente gostaram de mim, e além do mais, dei uma gorjeta alta para os dois. Muitos abraços e beijos. Perto estão alguns militares e um deles chama a atenção pelo monte de estrelas que tem no ombro. Pergunto se é um general. O rapaz responde baixinho que não pode falar sobre isto. Tomo a sinceridade da declaração como uma prova de amizade, novas despedidas e vou para a sala de espera do aeroporto, onde encontro um brasileiro, funcionário da FAO, que veio para um programa de ajuda à Coreia. Está muito desanimado porque, devido ao atraso norte-coreano, a tecnologia que trouxe não pode ser aplicada. Trocamos impressões da viagem, e ele me conta que, passeando em Pyongyang, ficou muito distante do guia, o que lhe valeu uma reprimenda surpreendente: “Se o senhor for sequestrado a culpa não é minha”.

    Dentro do Vazio Comunista Parte V


    No coração das trevas
    (quinta parte)
    Claudio Mafra

    Deixamos Moyang e vamos em direção à cidade de Kaesong, que está na fronteira com a Coreia do Sul. Uma viagem agradável, por uma autoestrada excelente e… deserta. Os guias estão cada vez mais descontraídos, sem ter ninguém para vigiá-los. O rapaz já esteve na Alemanha. Fico surpreso. Será que não percebeu a diferença do mundo exterior? Faço uma ou outra pergunta que não pareçam comparações desvantajosas para a Coreia, mas ele jamais irá se expor em frente à moça. E quem garante que o chofer não fala inglês? No entanto, com o tempo, já no fim da minha viagem, percebi que os guias também não têm a idéia geral do que seja a Coreia do Norte. Sabem que não é o que me estão contando, sabem que estão escondendo muita coisa, mas não chegaram ao conjunto. Jamais acreditariam que eles próprios são parte de uma mentira de proporções astronômicas. Os norte-coreanos há décadas estão submetidos a uma inacreditável lavagem cerebral que faz com que acreditem que suas vidas estão para todo o sempre ligadas aos Queridos Demônios. Tudo é impossível sem eles. São obrigados a ter o retrato dos dois, pendurados na parede de suas casas. Passam toda sua existência ouvindo hinos de louvores a Kim Il-sung, hinos que os acompanham nas ruas, nas estações de trem, no trabalho, e quando vão dormir. Estudam os seus sábios pensamentos, aprendem que Ele os amou, que Ele é a própria Coreia do Norte, onde as pessoas serão ainda mais felizes, apesar de já estarem no “paraíso dos trabalhadores”, que Ele construiu.

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    Kaesong, upload feito originalmente por giladr.

    Por viverem ferreamente enclausurados em suas fronteiras, os norte-coreanos não têm a mínima ideia do que seja o mundo exterior. Pensam que Kim Il-sung, quando estava vivo, era o homem mais famoso do mundo. Desconhecem qualquer personalidade ocidental, e jamais acreditariam que um americano pisou na lua. Também não sabem o que está acontecendo em seu próprio país, já que são impedidos de viajar de um lado para o outro. Não têm ídolos comuns como estrelas de cinema, cantores, personalidades de TV, atletas, músicos, escritores, políticos. Nos filmes da TV não aparecem os nomes dos atores, diretores, nenhum crédito. Mas, uma coisa todos os norte-coreanos sabem, e têm medo: o gulag. O serviço secreto da Coreia do Sul estimou que em 1999 havia duzentos mil prisioneiros nos 10 terríveis campos de concentração espalhados por remotas regiões do país.

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    Kaesong, upload feito originalmente por waasa.

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    Kaesong, upload feito originalmente por www.j-pics.info.

    A vida é a sobrevivência do dia a dia. Estima-se que, em 1998, três milhões de pessoas morreram de fome. Uma criança norte-coreana de sete anos de idade é vinte centímetros menor e dez quilos mais magra do que seu correspondente na Coreia do Sul.

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    kids, upload feito originalmente por shonamaguire.

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    school_children, upload feito originalmente por shonamaguire.

    Já foi dito que o Querido Líder é o único gordo da Coreia do Norte.
    De

    Centenas de milhares de norte-coreanos correndo o risco de prisão, ou mesmo de perder suas vidas, tentam atravessar a fronteira com a China. Infelizmente, para eles, as autoridades chinesas prezam mais suas boas relações com o governo da Coreia do Norte do que suas obrigações com a Convenção das Nações Unidas para Refugiados e entregam os fugitivos à polícia norte-coreana, o que representa condená-los a um longo encarceramento. Se houver uma segunda tentativa, a punição é a prisão perpétua ou a execução, que é estendida para os que tentarem o asilo político, entrarem em contato com sul-coreanos, com missionários estrangeiros, com agentes de ajuda humanitária, com jornalistas, ou tiverem relações sexuais com estrangeiros.



    Os dias de minha viagem se passaram como se eu estivesse em outro mundo, alguma coisa irreal. É horrível ver as pessoas andando devagar pelas ruas, cabisbaixas, tão magras, silenciosas, a tristeza visível em seus poucos gestos. Não é somente uma população de escravos, mas de mortos vivos. Em seus cérebros esvaziados de qualquer motivação, a existência está ligada para todo o sempre aos dois Kim, os arquitetos dessa maldade infernal.

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    Kaesong suburbs (2), upload feito originalmente por Kernbeisser.

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    Korean boys, Kaesong, upload feito originalmente por Kernbeisser.

    Dentro do Vazio Comunista Parte IV

    No coração das trevas (quarta parte)
    Claudio Mafra

    Agora vamos para Myohyang, região de montanhas. O jipe desliza veloz pela estrada, sempre deserta. À medida que vamos subindo, cresce o humor dentro do carro e Kong inicia uma sessão de piadas. Logo elas se tornam pesadas, e depois da tradução até o chofer está rindo. Nesse momento a moça diz que eu sou muito inteligente para ser um turista. Finjo que não prestei atenção, continuo brincando, mas não gostei nada. O que ela quis dizer com isso? Que os turistas são burros, ou que eu não sou turista? Desde o início da viagem essa fanática está tentando me pegar em alguma contradição. Que os dois são diferentes, eu não tenho dúvida. Ela é muito mais aplicada no seu papel de espiã. O rapaz me parece mais seguro, e houve um dia em que simplesmente me contou que estava tranquilo porque eu havia sido investigado. Ótimo.

    Chegamos ao templo budista Pohyon, onde querem me mostrar que existe liberdade de religião. Lá está o monge de plantão fingindo que é feliz. É patético vê-lo juntando as mãos enquanto se curva para mim. Neste lugar, o enredo é mal elaborado, não engana ninguém, e eu acho que não é à toa que, nas coisas mais ridículas, Kong caia fora e deixe a tarefa para Hona. Depois de também cumprir o meu papel, começo a fotografar os belos jardins do templo, mas a minha Querida Guia resolve me dizer que tudo o que estou vendo foi bombardeado pelos americanos na guerra da Coréia, em 1951. Faz um pequeno discurso sobre a maldade do inimigo e a coragem dos norte-coreanos. A mocinha é realmente beligerante.

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    Mount Myohyang Buddhist Shrine, upload feito originalmente por Ray Cunningham.

    A próxima etapa é uma visita ao Palácio da Exibição da Amizade Internacional. Desta vez sou recebido por uma mulher linda, vestida com um luxuoso traje típico norte-coreano. É uma pena que esteja desperdiçada aqui, neste fim do mundo. Deixo de olhar para ela e quase caio de costas quando se abre uma porta e vejo nada mais, nada menos, do que o Querido Líder! Sim, lá está ele, altíssimo, sentado em um trono, do mesmo jeito que um faraó, uma estátua enorme, todo o ambiente decorado em rosa-choque, azul-bebê, e outras cores berrantes em papel crepom vermelho. Um delírio kitsch. O grotesco absoluto. A loucura total. É um choque difícil de ser controlado. Em qualquer lugar do mundo saberiam que é espanto, e não admiração, mas aqui, eu só vejo orgulho nos olhos das duas mulheres que me observam. Isto é muito mais do que qualquer coisa que Stalin, O Farol da Humanidade, possa ter imaginado, porque embora tenha criado o “culto da personalidade”, ele tinha senso do ridículo, e não fez os russos pensarem que era um deus. Se eu fosse escolher só uma coisa para dizer o que é a Coreia do Norte, seria esta sala. Fico imaginando o comportamento dos verdadeiros turistas que passam por este teste de autocontrole. Fingindo respeito pelo lugar, apenas sussurro para elas que estou muito impressionado. Outra porta se abre, e desta vez é o Grande Líder, de pé, cercado de flores, um céu muito azul por cima de sua cabeça, uma paisagem bucólica, uma estátua de cera feita pelos chineses. É muito menor do que a outra, perde longe para seu filho, o “Grande General”, e por não ser mais surpresa não tem graça.

    Palácio da Exibição Internacional da Amizade foi construído para mostrar aos presentes que o Grande Líder e o Querido Líder ganharam de outros países. São longos corredores só de tapetes, quadros, jóias, vasos, esculturas, e peças típicas de cada lugar. Começo vendo os do Grande Líder. Com exceção dos que vieram da China e Rússia, é difícil encontrar alguma coisa que tenha a qualidade que se espera para que sejam oferecidas a um chefe de estado. Na verdade é um monte de quinquilharias empilhadas nas vitrines, e parece que ninguém levou a sério esse negócio de presentear ditadores malucos escondidos em um país que pertence a outra galáxia. Provavelmente a maioria dessas coisas jamais veio de lugar algum, muitos nomes de países estão escritos de maneira errada e o mais provável é que tenham sido fabricados na Coréia mesmo. Enquanto vamos andando, a guia me diz que de seis em seis meses todos os presentes são trocados, e se eu ficasse um minuto admirando cada um, iria levar um ano e meio para terminar. É uma ótima desculpa para acelerar o passo e acabar logo com isso. Infelizmente me esqueci de perguntar pelo presente brasileiro. Será que existe alguma estátua do Pelé, perdida no meio da bagunça?

    Em outra ala do palácio estão os presentes do “Líder do Século Vinte e Um”. A mesma coisa, só que a qualidade baixou ainda mais. Para bajular e conseguir favores é possível ver tanto um feiíssimo carro de luxo, oferecido pela Hyunday, quanto um inacreditável micro-ondas!



    A visita aos presentes terminou, e com notável ingenuidade a moça me pergunta se eu conheço outro lugar com coisas tão lindas. Meio sem jeito digo que, talvez, o Vaticano. Afinal, não posso ficar concordando com tudo. Antes de qualquer outro comentário, a luz se apaga. A escuridão é absoluta, porque não existem janelas. Fico paralisado, elas trocam algumas palavras e de repente sinto o levíssimo toque das suas mãos nas minhas, e assim vão me levando, bem devagar, com enorme delicadeza, até a saída. Um comportamento tão feminino só mesmo no Oriente.

    Dentro do Vazio Comunista Parte III

    No coração das trevas (terceira parte)
    Claudio Mafra

    Andando pelas margens do Daedong, o bonito rio que divide Pyongyang, fotografo alguns pescadores. Nenhum deles olha para mim. É o medo de cometer algum erro, que provavelmente nem sabem qual seria. Quando vejo uma velhinha andando em farrapos, a imagem do desamparo, não resisto à tentação e tiro a foto, fingindo não ouvir o grito de NO! dado por Kong, distante uns cinquenta metros. Ele grita outra vez, e eu faço um sinal de que não havia ouvido. Disfarço e vou em frente, fotografando outras coisas. Quando, afinal, nos encontramos, vejo que está sendo advertido por um homem saído do nada. Nem consigo ver o rosto do novo personagem e ele já foi embora. O guia está muito sério. Eu vou ter que lhe entregar o filme. Fico nervoso, não sei se o episódio vai terminar desta maneira tão simples, e além do mais ele já está no bolso, misturado com outros. Kong me diz que se a foto não estiver naquele que eu escolhi para lhe entregar vão me confiscar todos eles. O quê? Só isso? Até que está barato. Pensei que fossem me despachar para Pequim, ou ser interrogado. De tarde fico sabendo que dei sorte e acharam a foto da velhinha.

    Agora vão me mostrar duas estações do metrô de Pyongyang que seriam verdadeiras obras de arte. As escadas rolantes não param de nos levar cada vez mais para o fundo da terra, fico impressionado, e o guia confirma, orgulhoso, que o metrô é também um abrigo nuclear com 100 metros de profundidade. Quando finalmente chegamos, eu posso ver que as estações são uma tentativa canhestra de repetir aquelas que foram construídas por Stalin, em Moscou, famosas pela beleza. Aqui é tudo feio, de mau gosto, kitsch. O Presidente Eterno não poderia faltar na decoração, e lá está ele, feito de pastilhas coloridas, caminhando junto com seu povo eufórico com tanta felicidade.

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    Revival Station Pyongyang Metro DPRK, upload feito originalmente por Ray Cunningham.

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    Into the subway Pyongyang North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    Revival Station, Pyongyang Metro, upload feito originalmente por minifastcar33.

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    Revival Station, Pyongyang Metro, upload feito originalmente por minifastcar33.

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    Pyongyang subway - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

    O erro desse programa foi entrarmos em um vagão para irmos de uma estação para outra. Pude ver as pessoas, amontoadas, encolhidas, muito magras, as roupas escuras, os rostos com expressão de medo, os olhos voltados para o chão. Os zumbis norte-coreanos. Fico chocado com a cena e espantado com a insensibilidade de Kong. Ele continua rindo e conversando comigo, não se dando conta de que era exatamente a imagem que não poderia ser mostrada.

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    In a wagon, in the subway. North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

    No imenso Palácio para Estudantes e Crianças de Pyongyang, sou levado para ver meninas que estudam música, ballet, acrobacia, bordado. Todas com um sorriso tão ensaiado que vai se tornando alguma coisa insuportável, na medida em que as portas das salas de aula vão sendo abertas. Mas, o que é perversidade, e eu custei um pouco a perceber, é que as suas faces não expressam simplesmente uma gentileza forçada para o visitante que chega. Isso é comum, nós conhecemos. O que acontece é que as meninas fingem que não me viram entrar. Os sorrisos significam que elas estão em permanente estado de graça e nem percebem quando a porta é aberta e alguém começa a rodopiar pela sala, com uma câmera enorme. Não há como evitar o sentimento de vergonha por estar sendo instrumento de uma farsa, desta vez envolvendo as pobres crianças.



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    Kinderpalast Pyongyang, upload feito originalmente por www.j-pics.info.

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    More performing children at the palace, upload feito originalmente por ninjawil.

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    Children's Palace, upload feito originalmente por ninjawil.

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    Children Playing Guitar, upload feito originalmente por ninjawil.

    No auditório assistimos a um espetáculo com a fina flor dos estudantes. Até que é bom, mas os onipresentes, Grande Líder e Querido Líder, não param de mostrar suas caras em slides projetados no fundo e dos lados do palco. A guia me explica que as canções são apologias sobre o Grande Líder e aproveita para perguntar se estou percebendo como as crianças estão alegres. Claro que estou. Todas elas estão com a famosa felicidade dos que vivem no paraíso norte-coreano.
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    Kinderpalast Pyongyang, upload feito originalmente por www.j-pics.info.

    Na platéia, um grupo chama a atenção. São dezenas de meninos, entre seus dez e 13 anos de idade, uniformizados, cabeças raspadas, maneiras arrogantes, expressão debochada. Olham para mim de alto a baixo, com a maior segurança. São os pequenos guerreiros, cadetes da escola militar. A elite da elite. Em toda a viagem foi o momento de maior orgulho de minha guia. Ela aponta para os garotos e me diz que os americanos e os sul-coreanos têm medo deles. Concordo, desta vez com toda sinceridade.

    De Imagens do Blogger
    O exército norte-coreano é o quinto do mundo. Mais de um milhão de soldados estão em pé de guerra, e mais de seis milhões podem ser convocados imediatamente. O serviço militar obrigatório é de dez anos para o homem e de sete anos para a mulher. O regime gasta mais de cinco bilhões de dólares por ano na sua defesa, incríveis 32% do PIB. Um pequeno país de 23 milhões de habitantes que é o mais militarizado do mundo.
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    North Korean army Pyongyang, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

    Dentro do Vazio Comunista Parte II

    No coração das trevas (segunda parte)
    Claudio Mafra

    Fico hospedado no Hotel Yanggakdo, o melhor de Pyongyang, que ostenta a cotação bastante generosa de ser um cinco estrelas. Os dois guias começam a se revezar, e apenas o rapaz me leva para jantar. (Vou chamá-lo de Kong, e a moça de Hona.) A escuridão nas ruas é completa. Se na capital é assim, é fácil imaginar o interior do país. Feéricamente iluminada está a imensa torre com sua tocha vermelha, símbolo da eternidade do Partido Comunista, construída em 1982, deliberadamente um metro maior do que o Monumento a Washington, e com 22 mil blocos de granito branco, cada um para o número de dias que o Grande Líder vivera até aquela data. Acho que é o momento certo para ensaiar uma conversa inocente sobre fontes de energia, e menciono a perigosa palavra nuclear. Kong não responde, ficou mudo, ainda não é hora para essas liberdades, e ele espera que eu entenda as regras do jogo e não faça nada que possa comprometê-lo. Após um breve constrangimento, o assunto já é a excelência do restaurante para onde estamos indo. O lugar é bem modesto, fuma-se muito, e as pessoas em outras mesas só olham para mim no momento em que entramos. Esta seria a única vez em que eu comeria em público. Durante toda a viagem eu ficaria sozinho em alguma sala, sendo servido com grande deferência e o elegante ritual que só se encontra no oriente. Neste momento outras pessoas também estão em nossa mesa, e se divertem me ensinando como pescar o ovo frito que consegue boiar em cima de alguma coisa que não consegui identificar. Provavelmente também eram guias, já que os norte-coreanos comuns são proibidos de se dirigirem aos estrangeiros.

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    DPRK / North Korea, upload feito originalmente por Lucaskt.

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    Tower of Juche Idea, Pyongyang, North Korea, upload feito originalmente por yeowatzup.

    No outro dia, no café da manhã, depois de me cumprimentar, Hona pergunta por que eu havia me levantado três vezes durante a noite. A esta crua declaração de que sou vigiado dentro do meu quarto, respondi, com uma naturalidade estudada, que sinto sede de noite. Não deixei de ficar com um pouco de vergonha porque teriam visto a minha mala abarrotada de biscoitos, maçãs, toddynhos, latas de atum, sardinhas, e cigarros ocidentais. Tudo isto por conta da recomendação da agência de turismo de Pequim, que por experiência sabe que muitos turistas rejeitam a comida norte-coreana. Os cigarros são para dar aos soldados na fronteira, em outra etapa da viagem.

    Saímos do hotel e vamos para o belo parque Chilgol, onde está a réplica da choupana onde supostamente nasceu o Grande Líder. Um bando de escolares escuta suas professoras, visivelmente nervosas com a proximidade dos guias. Neste país todo mundo vigia todo mundo. Em seguida, caminhando para a Praça Kim Il-sung, eu posso ver ao longe uma menina que vem descendo a rua sozinha, e quando se aproxima é notável como está bem vestida. Chamaria atenção em qualquer lugar do mundo. Quando paramos para que eu a fotografasse, ela faz uma profunda reverência, graciosa, curiosamente séria. Depois segue seu caminho, no mesmo ritmo. Surpreso, pergunto para a guia o que ela estaria fazendo ali, tão pequena, sem ninguém ao lado. Recebo uma resposta sem sentido. Mais tarde, com a experiência que fui adquirindo, eu saberia que provavelmente foi plantada no meu caminho. É assim que funciona.

    O Grande Líder construiu estátuas dele mesmo em todos os lugares da Coreia. A maior delas está em Pyongyang. São vinte metros de altura, feita de bronze e pintada de ouro. Cheguei perto do monstrengo e depositei flores. Afastei-me andando de costas, parei, curvei a cabeça em sinal de respeito, e, quase que militarmente, me virei, caminhando em direção à Hona, que me recebeu com um enorme sorriso. Eu sou o turista sonho dos guias. Dali mesmo, da praça Kim Il-sung, eu posso ver a Universidade Kim Il-sung e o Estádio Kim Il-sung. Nada de usar os nomes de Marx, Lênin ou Stalin. Vai tudo mesmo para o Sol Vermelho do Povo Oprimido.

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    This way please...North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    3 pioneers at Mansu hill North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

    Dentro do Vazio Comunista Parte I

    Apesar da severidade do regime, o turismo na Coréia do Norte é permitido. Alguns textos e vídeos deste blog vão mostrar o país oriental que, congelado no modelo soviético, causa arrepios ao turista do século XXI.

    Texto: Claudio Mafra, No coração das trevas
    original aqui
    Fotos: Ilustrado com fotos do Flickr, cada uma com seu devido crédito.

    No coração das trevas
    Claudio Mafra
    Trecho

    "... Em 2004, resolvi viajar para a Coréia do Norte, saindo de Pequim, na China. Escrevi um artigo para o jornal O Estado de São Paulo..."

    "..Finalmente embarco no avião russo, caindo aos pedaços, da Air Koryo. A viagem é curta, 1 hora e 40 minutos e, pela janela, a primeira visão que tenho da Coréia do Norte é a de um espaço desolador. As estradas chamam atenção pela ausência de veículos.

    Após o desembarque, quando todos pegaram suas malas e foram embora, me deixando completamente sozinho no aeroporto, e já na iminência de ser interpelado por um guarda, achei que não tinha sido uma idéia muito boa haver entrado naquele avião. Eu me encontrava na delicada posição de não haver contado toda a verdade sobre a minha identidade e, no feroz regime da Coréia do Norte, o sequestro, a tortura, a morte, ou o confinamento em campos de concentração são uma rotina. Neste estado paranóico, todo estrangeiro é um potencial agente da CIA planejando assassinar o líder. O governo norte-coreano já provou várias vezes não ter a menor preocupação sobre o que pensa o resto do mundo a respeito do seu comportamento delinquente. Protestos diplomáticos e apelos de organizações internacionais são sumariamente ignorados.

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    Pyongyang airport North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    pyongyang airport, upload feito originalmente por redjef25.

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    DPRK / North Korea, upload feito originalmente por Lucaskt.

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    Pyongyang Airport duty free shop, upload feito originalmente por Last Known Location.

    Para meu alívio, chegaram os guias, um homem e uma mulher bonita, muito sorridentes, provavelmente satisfeitos por haverem cumprido sua primeira tarefa, que é a de haver me deixado nervoso. É a técnica que usam. Tudo acontece no último momento, no limite. Nosso carro é um luxuoso Nissan 4×4, e parece que os guias estão impressionados por eu ter vindo sozinho, o que tornou a viagem muito mais cara. Estou sendo tratado como um VIP. Saímos do aeroporto em direção a Pyongyang, e nesses primeiros momentos recebo instruções sobre o comportamento de um turista: não posso ir a lugar nenhum sem que pelo menos um dos dois esteja comigo; só posso fotografar estando fora do carro e com a permissão deles; não posso me dirigir a ninguém na rua. As primeiras perguntas que me fazem, por mais comuns que sejam, sempre causam desconforto, porque estes não são guias comuns. Tenho que ser cauteloso com o que digo.

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    Tram and traffic policewoman, Pyongyang, upload feito originalmente por Kernbeisser.

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    nk2007-pyongyang-guidePueblo-3, upload feito originalmente por jödö.

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    North-Korea - Pyongyang, upload feito originalmente por Fispace.

    Enquanto vamos conversando, a caminho do hotel, os guias recebem o meu apoio incondicional para tudo que digam a respeito de assuntos políticos. Longe de mim cometer a insensatez de discordar. Eles não perdem tempo e expõem a tese que seria martelada incansavelmente durante toda minha viagem: a Coreia do Norte é uma democracia governada pelos trabalhadores, um país pacífico, que o imperialismo americano quer destruir. O ponto central de suas vidas é a espera da inevitável guerra onde derrotarão os Estados Unidos e o governo fantoche da Coreia do Sul, conseguindo desta maneira a reunificação das duas Coreias sob um governo comunista. Sentem-se ultrajados com o país dividido. Em tudo o que dizem conseguem colocar um parêntesis onde tecem louvores a Kim Il-sung, o Grande Líder, e antigo ditador, e ao seu filho Kim Jong-il, o Querido Lider, e atual ditador. É uma ladainha interminável e, nesses primeiros momentos, se não se prestar muita atenção fica-se perdido entre os dois nomes e tantos elogios qualificativos, tornando-se difícil descobrir de qual dos dois eles estão falando.

    Kim Il-sung foi o introdutor do comunismo na Coreia do Norte e ficou no poder desde 1948 até sua morte, em 1994. Quando Stalin caiu em desgraça na União Soviética, em 1956, sendo denunciado como criminoso, e suas estátuas foram destruídas em todo o mundo comunista, o ditador norte-coreano se recusou a aceitar os novos padrões ditados pelo governo soviético. O país continuou sua trajetória stalinista até os dias de hoje, transformando-se em um raríssimo anacronismo, fascinante para os scholars tal qual seria uma ilha de dinossauros para paleontólogos. Eu acredito que em pouco tempo este regime vai desaparecer, portanto não posso perder essa oportunidade única. É extraordinário poder voltar até os tempos da Rússia de Stalin, simplesmente pegando um avião, ao invés de uma máquina do tempo.

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    Kim Jong Il is happy, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    Kaesong - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    Time for rice in North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

    Além de ser O Grande Líder, Kim Il-sung também é conhecido como “O Sol Vermelho dos Povos Oprimidos”, “O Sempre Vitorioso Brilhante Comandante”, “O Sol da Humanidade”, “O Sol da Nação”. Depois de sua morte tornou-se “O Eterno Presidente”. Seu aniversário, em 15 de abril, é o dia de Natal da Coreia do Norte. Nos bottons, obrigatoriamente usados por todos os norte-coreanos que entram em contato com estrangeiros, é a sua cara que aparece, ao invés da bandeira nacional. A “Canção do General Kim Il-sung” é mais importante do que o hino nacional. Parece que esse personagem de realismo fantástico, embora morto, continua a gozar de boa saúde, porque ele assina os vistos norte-coreanos, isto é, seu nome está abaixo da linha onde alguém faz alguns rabiscos. Seu nome também está em muitos outros documentos, porque Kim Il-sung ainda é oficialmente o chefe de Estado da Coreia do Norte. Impossível esquecê-lo. Um homem que podia controlar o tempo, fazendo o sol brilhar, ou as chuvas chegarem. O governo da Coreia do Norte é também uma religião.

    Kim Jong-iL, o Querido Líder, está vivíssimo e, ao contrário do pai, que preferia se manter na obscuridade para o mundo exterior, tornou-se figurinha fácil no noticiário da televisão em virtude do programa nuclear norte-coreano. Ele também pode ser chamado de “O Grande General”, (muito usado pela minha guia), ou “Querido General”, “Centro do Partido”, “Respeitado Líder”, “Supremo Comandante”, “Pai do Povo”, “Extraordinário Estrategista Militar”, “Líder de Aço”, “Pai da Nação”, “Líder do Povo”, “Nosso Pai”, “Nosso General”, “Líder do Século Vinte e Um”, “Sol do Século Vinte e Um”, “Glorioso Sol do Século Vinte e Um”, e mais alguns outros nomes modestos. Para quem acha bizarro é bom lembrar que Stalin, reverenciado por famosos intelectuais de esquerda no Ocidente, também era chamado de “Farol da Humanidade”, “Pai”, “Paizinho”, “Professor”, “Grande Líder do Povo Soviético”, “Herdeiro da Causa de Lênin”, “Criador da Constituição de Stalin”, “Transformador da Natureza”, “Grande Timoneiro”, “Grande Estrategista da Revolução”, “Gênio da Humanidade”, o “Maior Gênio de Todos os Tempos e Povos”.


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    Kim Il Sung is alive - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    Kim Il Sung statue - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    Kim Jong Il and the kids, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.


    Quando o nosso carro passa ao lado de um grande arco do triunfo pergunto se posso fotografar. Claro que posso. É justamente o que esperam que eu faça. Belas fotos de tudo que tenha aparência de prosperidade. Enquanto caminho, procurando pelos melhores ângulos, não posso deixar de reparar que os guias se mantêm muito alertas, olhando para todos os lados. Eles me dizem, com razão, que o arco é ainda maior do que o de Paris, e que foi construído no lugar onde o Grande Líder fez o seu discurso quando a Coreia se libertou do domínio japonês, depois da Segunda Guerra Mundial.

    Pyongyang é uma cidade bonita, com grandes praças, jardins, e alguns edifícios, que no conjunto dão uma forte impressão de monumentalidade. Essa arquitetura de imensos espaços tem a função de ser um palco para as paradas militares e demonstrações artísticas em homenagem a Kim Il-sung, e a Kim Jong-il. Exatamente como eu havia percebido pela janela do avião, são poucos os carros circulando, não existe nenhum comércio e o silêncio é perturbador. Ninguém fala em voz alta, mas, longe de ser educação, é medo.

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    Pyongyang, North Korea, upload feito originalmente por nyon45.


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    Another day in Pyongyang, upload feito originalmente por Martijn de Wal.

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    Juche tower in Pyongyang North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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    Pyongyang cityscape, upload feito originalmente por Matthijs Gall.

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    Guess what we think of you, upload feito originalmente por boobootoo2.

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    North Korea memorial in Pyongyang, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.