No coração das trevas (terceira parte)
Claudio Mafra
Andando pelas margens do Daedong, o bonito rio que divide Pyongyang, fotografo alguns pescadores. Nenhum deles olha para mim. É o medo de cometer algum erro, que provavelmente nem sabem qual seria. Quando vejo uma velhinha andando em farrapos, a imagem do desamparo, não resisto à tentação e tiro a foto, fingindo não ouvir o grito de NO! dado por Kong, distante uns cinquenta metros. Ele grita outra vez, e eu faço um sinal de que não havia ouvido. Disfarço e vou em frente, fotografando outras coisas. Quando, afinal, nos encontramos, vejo que está sendo advertido por um homem saído do nada. Nem consigo ver o rosto do novo personagem e ele já foi embora. O guia está muito sério. Eu vou ter que lhe entregar o filme. Fico nervoso, não sei se o episódio vai terminar desta maneira tão simples, e além do mais ele já está no bolso, misturado com outros. Kong me diz que se a foto não estiver naquele que eu escolhi para lhe entregar vão me confiscar todos eles. O quê? Só isso? Até que está barato. Pensei que fossem me despachar para Pequim, ou ser interrogado. De tarde fico sabendo que dei sorte e acharam a foto da velhinha.
Agora vão me mostrar duas estações do metrô de Pyongyang que seriam verdadeiras obras de arte. As escadas rolantes não param de nos levar cada vez mais para o fundo da terra, fico impressionado, e o guia confirma, orgulhoso, que o metrô é também um abrigo nuclear com 100 metros de profundidade. Quando finalmente chegamos, eu posso ver que as estações são uma tentativa canhestra de repetir aquelas que foram construídas por Stalin, em Moscou, famosas pela beleza. Aqui é tudo feio, de mau gosto, kitsch. O Presidente Eterno não poderia faltar na decoração, e lá está ele, feito de pastilhas coloridas, caminhando junto com seu povo eufórico com tanta felicidade.
O erro desse programa foi entrarmos em um vagão para irmos de uma estação para outra. Pude ver as pessoas, amontoadas, encolhidas, muito magras, as roupas escuras, os rostos com expressão de medo, os olhos voltados para o chão. Os zumbis norte-coreanos. Fico chocado com a cena e espantado com a insensibilidade de Kong. Ele continua rindo e conversando comigo, não se dando conta de que era exatamente a imagem que não poderia ser mostrada.
No imenso Palácio para Estudantes e Crianças de Pyongyang, sou levado para ver meninas que estudam música, ballet, acrobacia, bordado. Todas com um sorriso tão ensaiado que vai se tornando alguma coisa insuportável, na medida em que as portas das salas de aula vão sendo abertas. Mas, o que é perversidade, e eu custei um pouco a perceber, é que as suas faces não expressam simplesmente uma gentileza forçada para o visitante que chega. Isso é comum, nós conhecemos. O que acontece é que as meninas fingem que não me viram entrar. Os sorrisos significam que elas estão em permanente estado de graça e nem percebem quando a porta é aberta e alguém começa a rodopiar pela sala, com uma câmera enorme. Não há como evitar o sentimento de vergonha por estar sendo instrumento de uma farsa, desta vez envolvendo as pobres crianças.
No auditório assistimos a um espetáculo com a fina flor dos estudantes. Até que é bom, mas os onipresentes, Grande Líder e Querido Líder, não param de mostrar suas caras em slides projetados no fundo e dos lados do palco. A guia me explica que as canções são apologias sobre o Grande Líder e aproveita para perguntar se estou percebendo como as crianças estão alegres. Claro que estou. Todas elas estão com a famosa felicidade dos que vivem no paraíso norte-coreano.
Na platéia, um grupo chama a atenção. São dezenas de meninos, entre seus dez e 13 anos de idade, uniformizados, cabeças raspadas, maneiras arrogantes, expressão debochada. Olham para mim de alto a baixo, com a maior segurança. São os pequenos guerreiros, cadetes da escola militar. A elite da elite. Em toda a viagem foi o momento de maior orgulho de minha guia. Ela aponta para os garotos e me diz que os americanos e os sul-coreanos têm medo deles. Concordo, desta vez com toda sinceridade.
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