Dentro do Vazio Comunista Parte IV

No coração das trevas (quarta parte)
Claudio Mafra

Agora vamos para Myohyang, região de montanhas. O jipe desliza veloz pela estrada, sempre deserta. À medida que vamos subindo, cresce o humor dentro do carro e Kong inicia uma sessão de piadas. Logo elas se tornam pesadas, e depois da tradução até o chofer está rindo. Nesse momento a moça diz que eu sou muito inteligente para ser um turista. Finjo que não prestei atenção, continuo brincando, mas não gostei nada. O que ela quis dizer com isso? Que os turistas são burros, ou que eu não sou turista? Desde o início da viagem essa fanática está tentando me pegar em alguma contradição. Que os dois são diferentes, eu não tenho dúvida. Ela é muito mais aplicada no seu papel de espiã. O rapaz me parece mais seguro, e houve um dia em que simplesmente me contou que estava tranquilo porque eu havia sido investigado. Ótimo.

Chegamos ao templo budista Pohyon, onde querem me mostrar que existe liberdade de religião. Lá está o monge de plantão fingindo que é feliz. É patético vê-lo juntando as mãos enquanto se curva para mim. Neste lugar, o enredo é mal elaborado, não engana ninguém, e eu acho que não é à toa que, nas coisas mais ridículas, Kong caia fora e deixe a tarefa para Hona. Depois de também cumprir o meu papel, começo a fotografar os belos jardins do templo, mas a minha Querida Guia resolve me dizer que tudo o que estou vendo foi bombardeado pelos americanos na guerra da Coréia, em 1951. Faz um pequeno discurso sobre a maldade do inimigo e a coragem dos norte-coreanos. A mocinha é realmente beligerante.

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Mount Myohyang Buddhist Shrine, upload feito originalmente por Ray Cunningham.

A próxima etapa é uma visita ao Palácio da Exibição da Amizade Internacional. Desta vez sou recebido por uma mulher linda, vestida com um luxuoso traje típico norte-coreano. É uma pena que esteja desperdiçada aqui, neste fim do mundo. Deixo de olhar para ela e quase caio de costas quando se abre uma porta e vejo nada mais, nada menos, do que o Querido Líder! Sim, lá está ele, altíssimo, sentado em um trono, do mesmo jeito que um faraó, uma estátua enorme, todo o ambiente decorado em rosa-choque, azul-bebê, e outras cores berrantes em papel crepom vermelho. Um delírio kitsch. O grotesco absoluto. A loucura total. É um choque difícil de ser controlado. Em qualquer lugar do mundo saberiam que é espanto, e não admiração, mas aqui, eu só vejo orgulho nos olhos das duas mulheres que me observam. Isto é muito mais do que qualquer coisa que Stalin, O Farol da Humanidade, possa ter imaginado, porque embora tenha criado o “culto da personalidade”, ele tinha senso do ridículo, e não fez os russos pensarem que era um deus. Se eu fosse escolher só uma coisa para dizer o que é a Coreia do Norte, seria esta sala. Fico imaginando o comportamento dos verdadeiros turistas que passam por este teste de autocontrole. Fingindo respeito pelo lugar, apenas sussurro para elas que estou muito impressionado. Outra porta se abre, e desta vez é o Grande Líder, de pé, cercado de flores, um céu muito azul por cima de sua cabeça, uma paisagem bucólica, uma estátua de cera feita pelos chineses. É muito menor do que a outra, perde longe para seu filho, o “Grande General”, e por não ser mais surpresa não tem graça.

Palácio da Exibição Internacional da Amizade foi construído para mostrar aos presentes que o Grande Líder e o Querido Líder ganharam de outros países. São longos corredores só de tapetes, quadros, jóias, vasos, esculturas, e peças típicas de cada lugar. Começo vendo os do Grande Líder. Com exceção dos que vieram da China e Rússia, é difícil encontrar alguma coisa que tenha a qualidade que se espera para que sejam oferecidas a um chefe de estado. Na verdade é um monte de quinquilharias empilhadas nas vitrines, e parece que ninguém levou a sério esse negócio de presentear ditadores malucos escondidos em um país que pertence a outra galáxia. Provavelmente a maioria dessas coisas jamais veio de lugar algum, muitos nomes de países estão escritos de maneira errada e o mais provável é que tenham sido fabricados na Coréia mesmo. Enquanto vamos andando, a guia me diz que de seis em seis meses todos os presentes são trocados, e se eu ficasse um minuto admirando cada um, iria levar um ano e meio para terminar. É uma ótima desculpa para acelerar o passo e acabar logo com isso. Infelizmente me esqueci de perguntar pelo presente brasileiro. Será que existe alguma estátua do Pelé, perdida no meio da bagunça?

Em outra ala do palácio estão os presentes do “Líder do Século Vinte e Um”. A mesma coisa, só que a qualidade baixou ainda mais. Para bajular e conseguir favores é possível ver tanto um feiíssimo carro de luxo, oferecido pela Hyunday, quanto um inacreditável micro-ondas!



A visita aos presentes terminou, e com notável ingenuidade a moça me pergunta se eu conheço outro lugar com coisas tão lindas. Meio sem jeito digo que, talvez, o Vaticano. Afinal, não posso ficar concordando com tudo. Antes de qualquer outro comentário, a luz se apaga. A escuridão é absoluta, porque não existem janelas. Fico paralisado, elas trocam algumas palavras e de repente sinto o levíssimo toque das suas mãos nas minhas, e assim vão me levando, bem devagar, com enorme delicadeza, até a saída. Um comportamento tão feminino só mesmo no Oriente.