Dentro do Vazio Comunista Parte VI

No coração das trevas (sexta parte)
Claudio Mafra

Com a advertência para ficarmos sempre juntos, fomos levados para ver a “terra de ninguém”, ou DMZ (Zona Desmilitarizada): uma estreita faixa de uns trinta metros, que separa as duas Coreias. Aqui, neste lugar carregado de eletricidade e ódio, os soldados dos dois países montam guarda, andando em alguns quadrados de cores diferentes, tão perto uns dos outros que, se estendessem os braços, poderiam se tocar.


Os coreanos do norte com seus uniformes cor cáqui, modelos da década de cinquenta, figuras esqueléticas, um pouco de miséria em seus rostos, e os sul-coreanos completamente americanizados, de capacetes e óculos ray-ban. Existe um enorme cuidado para que não se quebre o delicado equilíbrio entre eles. Os soldados são substituídos a pequenos intervalos, para que não se cansem e cometam algum erro. Caminhando com os olhos no visor da câmera, sem querer coloquei um pé na faixa branca, início da “terra de ninguém” do lado norte-coreano. Foi uma gritaria pânica, onde se uniram guias, soldados, turistas. Comecei a pedir tantas desculpas que só faltei me dirigir também aos coreanos do sul, agitadíssimos, olhando para nós, sem saber o que acontecera. O soldado guia, a quem estavam destinados os cigarros que eu trouxera, e que esqueci no hotel, veio para o meu lado e disse que algum tempo atrás um inglês também se distraíra e quase havia entrado na Coreia do Sul, sendo fuzilado antes disso. Sim senhor, muita amabilidade sua me avisar.

South Korea Soldier | Soldado Sul Coreano.

From Flickr
ROK Soldier, upload feito originalmente por *christopher*.

De volta ao centro de Pyongyang, a intimidade com os guias alcança o seu nível mais alto. Eu sempre quis fotografar a guardinha de trânsito, muito bem fardada em azul, usando um bastãozinho com tanta energia que até parece que existe tráfego. Agora, quando passamos outra vez pelo mesmo lugar, o rapaz manda o chofer parar o carro e, bem malicioso, diz que posso descer e tirar minhas fotos. Respondo que não me interessa, porque de uma hora para outra pode sair alguém de trás do poste e me confiscar o filme. Os dois explodem em gargalhadas.





Sou levado para ver o “USS Pueblo”, que foi trazido do porto de Wonsan para o rio Daedong, em Pyongyang. Este é um grande troféu de guerra. O Pueblo era um navio espião americano que foi aprendido pelos norte-coreanos em 1968, provavelmente em águas internacionais. O capitão do barco, após a ameaça de que todos os 83 membros da tripulação seriam mortos, a partir do mais moço, até chegar a ele próprio, assinou uma confissão dizendo que estava espionando os norte-coreanos. Foi um episódio que provocou uma grande crise internacional durante a Guerra Fria, e provocou um enorme desgaste na imagem dos Estados Unidos.

Sou apresentado ao marinheiro que primeiro colocou os pés no navio, após uma rápida batalha. Agora ele é o “capitão” do Pueblo e, todo elétrico, mostra os buracos feitos pelas balas de metralhadoras e canhões dos navios norte-coreanos. Enquanto vamos andando pelos corredores apertados, subindo e descendo escadas, o herói começa a me contar muitas histórias, onde exalta a coragem dos seus antigos companheiros e ri da covardia dos americanos. O clímax é quando ele mesmo deu um chute no traseiro do capitão Bucher que tentava se esconder debaixo de uma mesa. Aprovo tudo que está me dizendo, mas a cena é mesmo de comédia pastelão misturada com uma infantilidade sinistra, porque além do absurdo do capitão tentando fugir, a mesa é ridiculamente pequena. Olho em volta, mas o guia já se mandou. Ele é muito esperto. Definitivamente não quer se envergonhar na minha frente. Preferiu me esperar do lado de fora do navio para os seus comentários políticos. Kong me diz que os russos fizeram enorme pressão para que a tripulação do Pueblo fosse logo libertada, e que o embaixador soviético em Pyongyang chegou a ameaçar o governo do Grande Líder com retaliações econômicas e políticas. Mesmo assim, Ele não cedeu; impossível imaginar que Ele fizesse isso. Os russos poderiam ficar com medo dos Estados Unidos, mas jamais a Coreia do Norte. Aponta para o Pueblo, que é a prova incontestável do que diz: emoldurada em uma das salas do navio está a cópia da humilhante confissão do capitão Bucher. (O pobre Bucher, quando chegou aos Estados Unidos, foi muito mal recebido e forçado a se aposentar).

Peço para ser fotografado apertando a mão do folclórico capitão, que está satisfeitíssimo por ter saído da chatice de ficar naquele navio o dia inteiro, sem ninguém para contar as suas histórias extraordinárias.

Já está chegando a hora do meu embarque e nada de aparecer o ticket da Air Koryo.

O guia me diz que está fazendo um grande esforço, parece que o avião está lotado, mas ele tem um amigo que talvez possa resolver o problema. Bem, essa história eu já conheço. Afinal o amigo conseguiu a passagem, mas infelizmente teve muitas despesas e ela… ficou mais cara. Novamente fico impressionado. Um regime de ferro, e as pessoas se arriscam de qualquer maneira.

No aeroporto os guias estão satisfeitos. Parece que realmente gostaram de mim, e além do mais, dei uma gorjeta alta para os dois. Muitos abraços e beijos. Perto estão alguns militares e um deles chama a atenção pelo monte de estrelas que tem no ombro. Pergunto se é um general. O rapaz responde baixinho que não pode falar sobre isto. Tomo a sinceridade da declaração como uma prova de amizade, novas despedidas e vou para a sala de espera do aeroporto, onde encontro um brasileiro, funcionário da FAO, que veio para um programa de ajuda à Coreia. Está muito desanimado porque, devido ao atraso norte-coreano, a tecnologia que trouxe não pode ser aplicada. Trocamos impressões da viagem, e ele me conta que, passeando em Pyongyang, ficou muito distante do guia, o que lhe valeu uma reprimenda surpreendente: “Se o senhor for sequestrado a culpa não é minha”.