Dentro do Vazio Comunista Parte I

Apesar da severidade do regime, o turismo na Coréia do Norte é permitido. Alguns textos e vídeos deste blog vão mostrar o país oriental que, congelado no modelo soviético, causa arrepios ao turista do século XXI.

Texto: Claudio Mafra, No coração das trevas
original aqui
Fotos: Ilustrado com fotos do Flickr, cada uma com seu devido crédito.

No coração das trevas
Claudio Mafra
Trecho

"... Em 2004, resolvi viajar para a Coréia do Norte, saindo de Pequim, na China. Escrevi um artigo para o jornal O Estado de São Paulo..."

"..Finalmente embarco no avião russo, caindo aos pedaços, da Air Koryo. A viagem é curta, 1 hora e 40 minutos e, pela janela, a primeira visão que tenho da Coréia do Norte é a de um espaço desolador. As estradas chamam atenção pela ausência de veículos.

Após o desembarque, quando todos pegaram suas malas e foram embora, me deixando completamente sozinho no aeroporto, e já na iminência de ser interpelado por um guarda, achei que não tinha sido uma idéia muito boa haver entrado naquele avião. Eu me encontrava na delicada posição de não haver contado toda a verdade sobre a minha identidade e, no feroz regime da Coréia do Norte, o sequestro, a tortura, a morte, ou o confinamento em campos de concentração são uma rotina. Neste estado paranóico, todo estrangeiro é um potencial agente da CIA planejando assassinar o líder. O governo norte-coreano já provou várias vezes não ter a menor preocupação sobre o que pensa o resto do mundo a respeito do seu comportamento delinquente. Protestos diplomáticos e apelos de organizações internacionais são sumariamente ignorados.

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Pyongyang airport North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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pyongyang airport, upload feito originalmente por redjef25.

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DPRK / North Korea, upload feito originalmente por Lucaskt.

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Pyongyang Airport duty free shop, upload feito originalmente por Last Known Location.

Para meu alívio, chegaram os guias, um homem e uma mulher bonita, muito sorridentes, provavelmente satisfeitos por haverem cumprido sua primeira tarefa, que é a de haver me deixado nervoso. É a técnica que usam. Tudo acontece no último momento, no limite. Nosso carro é um luxuoso Nissan 4×4, e parece que os guias estão impressionados por eu ter vindo sozinho, o que tornou a viagem muito mais cara. Estou sendo tratado como um VIP. Saímos do aeroporto em direção a Pyongyang, e nesses primeiros momentos recebo instruções sobre o comportamento de um turista: não posso ir a lugar nenhum sem que pelo menos um dos dois esteja comigo; só posso fotografar estando fora do carro e com a permissão deles; não posso me dirigir a ninguém na rua. As primeiras perguntas que me fazem, por mais comuns que sejam, sempre causam desconforto, porque estes não são guias comuns. Tenho que ser cauteloso com o que digo.

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Tram and traffic policewoman, Pyongyang, upload feito originalmente por Kernbeisser.

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nk2007-pyongyang-guidePueblo-3, upload feito originalmente por jödö.

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North-Korea - Pyongyang, upload feito originalmente por Fispace.

Enquanto vamos conversando, a caminho do hotel, os guias recebem o meu apoio incondicional para tudo que digam a respeito de assuntos políticos. Longe de mim cometer a insensatez de discordar. Eles não perdem tempo e expõem a tese que seria martelada incansavelmente durante toda minha viagem: a Coreia do Norte é uma democracia governada pelos trabalhadores, um país pacífico, que o imperialismo americano quer destruir. O ponto central de suas vidas é a espera da inevitável guerra onde derrotarão os Estados Unidos e o governo fantoche da Coreia do Sul, conseguindo desta maneira a reunificação das duas Coreias sob um governo comunista. Sentem-se ultrajados com o país dividido. Em tudo o que dizem conseguem colocar um parêntesis onde tecem louvores a Kim Il-sung, o Grande Líder, e antigo ditador, e ao seu filho Kim Jong-il, o Querido Lider, e atual ditador. É uma ladainha interminável e, nesses primeiros momentos, se não se prestar muita atenção fica-se perdido entre os dois nomes e tantos elogios qualificativos, tornando-se difícil descobrir de qual dos dois eles estão falando.

Kim Il-sung foi o introdutor do comunismo na Coreia do Norte e ficou no poder desde 1948 até sua morte, em 1994. Quando Stalin caiu em desgraça na União Soviética, em 1956, sendo denunciado como criminoso, e suas estátuas foram destruídas em todo o mundo comunista, o ditador norte-coreano se recusou a aceitar os novos padrões ditados pelo governo soviético. O país continuou sua trajetória stalinista até os dias de hoje, transformando-se em um raríssimo anacronismo, fascinante para os scholars tal qual seria uma ilha de dinossauros para paleontólogos. Eu acredito que em pouco tempo este regime vai desaparecer, portanto não posso perder essa oportunidade única. É extraordinário poder voltar até os tempos da Rússia de Stalin, simplesmente pegando um avião, ao invés de uma máquina do tempo.

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Kim Jong Il is happy, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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Kaesong - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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Time for rice in North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

Além de ser O Grande Líder, Kim Il-sung também é conhecido como “O Sol Vermelho dos Povos Oprimidos”, “O Sempre Vitorioso Brilhante Comandante”, “O Sol da Humanidade”, “O Sol da Nação”. Depois de sua morte tornou-se “O Eterno Presidente”. Seu aniversário, em 15 de abril, é o dia de Natal da Coreia do Norte. Nos bottons, obrigatoriamente usados por todos os norte-coreanos que entram em contato com estrangeiros, é a sua cara que aparece, ao invés da bandeira nacional. A “Canção do General Kim Il-sung” é mais importante do que o hino nacional. Parece que esse personagem de realismo fantástico, embora morto, continua a gozar de boa saúde, porque ele assina os vistos norte-coreanos, isto é, seu nome está abaixo da linha onde alguém faz alguns rabiscos. Seu nome também está em muitos outros documentos, porque Kim Il-sung ainda é oficialmente o chefe de Estado da Coreia do Norte. Impossível esquecê-lo. Um homem que podia controlar o tempo, fazendo o sol brilhar, ou as chuvas chegarem. O governo da Coreia do Norte é também uma religião.

Kim Jong-iL, o Querido Líder, está vivíssimo e, ao contrário do pai, que preferia se manter na obscuridade para o mundo exterior, tornou-se figurinha fácil no noticiário da televisão em virtude do programa nuclear norte-coreano. Ele também pode ser chamado de “O Grande General”, (muito usado pela minha guia), ou “Querido General”, “Centro do Partido”, “Respeitado Líder”, “Supremo Comandante”, “Pai do Povo”, “Extraordinário Estrategista Militar”, “Líder de Aço”, “Pai da Nação”, “Líder do Povo”, “Nosso Pai”, “Nosso General”, “Líder do Século Vinte e Um”, “Sol do Século Vinte e Um”, “Glorioso Sol do Século Vinte e Um”, e mais alguns outros nomes modestos. Para quem acha bizarro é bom lembrar que Stalin, reverenciado por famosos intelectuais de esquerda no Ocidente, também era chamado de “Farol da Humanidade”, “Pai”, “Paizinho”, “Professor”, “Grande Líder do Povo Soviético”, “Herdeiro da Causa de Lênin”, “Criador da Constituição de Stalin”, “Transformador da Natureza”, “Grande Timoneiro”, “Grande Estrategista da Revolução”, “Gênio da Humanidade”, o “Maior Gênio de Todos os Tempos e Povos”.


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Kim Il Sung is alive - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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Kim Il Sung statue - North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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Kim Jong Il and the kids, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.


Quando o nosso carro passa ao lado de um grande arco do triunfo pergunto se posso fotografar. Claro que posso. É justamente o que esperam que eu faça. Belas fotos de tudo que tenha aparência de prosperidade. Enquanto caminho, procurando pelos melhores ângulos, não posso deixar de reparar que os guias se mantêm muito alertas, olhando para todos os lados. Eles me dizem, com razão, que o arco é ainda maior do que o de Paris, e que foi construído no lugar onde o Grande Líder fez o seu discurso quando a Coreia se libertou do domínio japonês, depois da Segunda Guerra Mundial.

Pyongyang é uma cidade bonita, com grandes praças, jardins, e alguns edifícios, que no conjunto dão uma forte impressão de monumentalidade. Essa arquitetura de imensos espaços tem a função de ser um palco para as paradas militares e demonstrações artísticas em homenagem a Kim Il-sung, e a Kim Jong-il. Exatamente como eu havia percebido pela janela do avião, são poucos os carros circulando, não existe nenhum comércio e o silêncio é perturbador. Ninguém fala em voz alta, mas, longe de ser educação, é medo.

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Pyongyang, North Korea, upload feito originalmente por nyon45.


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Another day in Pyongyang, upload feito originalmente por Martijn de Wal.

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Juche tower in Pyongyang North Korea, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.

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Pyongyang cityscape, upload feito originalmente por Matthijs Gall.

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Guess what we think of you, upload feito originalmente por boobootoo2.

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North Korea memorial in Pyongyang, upload feito originalmente por Eric Lafforgue.